quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Padre Responde - "A interpretação da bíblia"

Resposta para a seguinte pergunta: “Uma vez eu debatendo com um judeu, ele me disse que em isaías, naquela parte que fala: “Eis que uma Virgem concebeu e dará a Luz um filho…”, o termo correto é “jovem” (almah), uma mulher casada e não virgem (betulah) e que o texto se refere ao nascimento de Ezequias. Como esclarecer essa dúvida? Tem algum material para me indicar?"

Caríssimo leitor, agradeço pela sua visita ao nosso site e o parabenizo pelo seu interesse em conhecer as razões pelas quais nós, cristãos, fazemos certas afirmações de fé. A fé que professamos não é uma fé cega; nós temos o dever de buscar entendê-la sempre mais. A adesão de fé que damos é certa e não duvidosa, apoiados na autoridade de Deus que está no princípio dos dados revelados, os quais cremos.  Mesmo assim, depois da adesão, o próprio ato de fé exige que busquemos aprofundar a verdade em que cremos. Por isso, não é um problema se uma pessoa questiona a fé; a questão é que algumas pessoas ficam somente no questionar e não procuram as razões pelas quais a Igreja faz tais afirmações.



Feitas estas considerações iniciais, vamos à questão que você propôs. Recordemos que nós cristãos lemos a Sagrada Escritura tendo como referência Cristo glorificado. Nele, tudo o que a Bíblia contém encontra significado. A Ressurreição de Cristo é uma luz que se projeta sobre toda a história sagrada dando a ela o sentido preciso. É óbvio que o judaísmo, o qual não reconhece Jesus Cristo como o Messias, terá uma outra maneira de interpretar os textos sagrados. A fé cristã é a fé dos Apóstolos, é a fé que a Tradição da Igreja conservou e transmitiu através dos séculos. Quando fazemos tal interpretação dos textos sagrados, nos apoiamos na fé da Igreja. Nunca interpretamos a Bíblia livremente, mas segundo a fé da Igreja. Ao nos depararmos com o acontecimento narrado na Sagrada Escritura, consideramos o episódio em relação ao momento em que aconteceu, mas, sobretudo em relação a Cristo, pois Nele – como já dito – todos os episódios encontram significado. A fé cristã, desde a antiguidade, aprendeu a interpretar o Antigo Testamento dessa maneira. Considere, por exemplo, o maná que aparece na travessia do deserto; esse episódio encontra pleno significado à luz do evento pascal de Cristo, que como sabemos se realiza plenamente no mistério da Eucaristia.

Sobre Maria, a Mãe de Jesus, a fé cristã desde as suas origens, faz algumas afirmações: se diz que ela é Mãe de Deus, sempre Virgem, Imaculada e Assunta ao céu. Recorde a oração já rezada no III século que diz: "Sob a vossa proteção nos colocamos, santa Mãe de Deus: não desprezeis as súplicas que em nossas necessidades te dirigimos, mas livrai-nos sempre de todo perigo, Ó Virgem gloriosa e bendita".

O texto ao qual você se refere é aquele de Is 7,14; citado literalmente no Evangelho de Mateus 1, 22-23 para se referir à Virgem Maria.

Mateus cita freqüentemente o Antigo Testamento. O cita umas 66 vezes. Em 43 ocasiões, aparecem citações textuais. Em 37 ocasiões, a citação textual é precedida por uma introdução. Há 10 ou 11 citações que são típicas de Mateus: as chamadas “citações de cumprimento”; por exemplo: Mt 1,22; 2,15.17.23; 4,14... Todas as citações de cumprimento de Mateus procedem dos profetas. Uma delas é a do texto em que aparece a nossa questão. Esta fórmula indica que os oráculos divinos dos profetas se cumpriram nos acontecimentos da vida de Jesus.

Mateus lia o Antigo Testamento, não como os rabinos com os seus métodos tradicionais de interpretação, mas com a liberdade que concedia a experiência cristã. Contemplava como messiânicos muitos textos que não eram tais para os comentaristas judeus. Assim faz com Is 7,14. O texto diz: “Uma virgem conceberá e dará à luz um filho, e o chamará Deus Conosco”.

Mateus quer mostrar que Deus preparou o nascimento de seu Filho. Que o nascimento do Filho de Deus entre nós sugere a ação criativa do Espírito Santo em vez da ação de um homem. Significa que Jesus Cristo é Filho de Deus ao invés de filho de Davi. Para Mateus, a Palavra de Deus não se cumpriu no passado, nem se cumprirá no futuro. A Palavra profética de Deus se cumpre nos acontecimentos da vida de Jesus. A profecia de Isaías não falava unicamente da prolongação da descendência davídica em seu tempo, mas na culminação da descendência davídica no autêntico filho de Davi, que é ao mesmo tempo Filho de Deus e de Maria.

O acontecimento ao qual se refere esta profecia de Isaías é o seguinte: as tropas da Síria marcharam até Jerusalém (734-733 a.C.) e a dinastia de Davi estava ameaçada pelo “filho de Tabeel” (Is 7,6) que pretendia suplantar a Acaz. O povo consultou os adivinhos (Is 8,19-20). O rei Acaz imolou seu filho aos deuses (2Re 16, 3-4) e depositou sua confiança nas intrigas políticas (buscou apoio da Assíria). Para pagar ao rei da Assíria, despojou o templo de suas riquezas (2Re 16,8). Isaías recriminou sua conduta e anunciou que a salvação encontrava-se unicamente em Deus: “se não acreditareis em mim, não subsistirás” (Is 7, 9b). Propôs um sinal. O rei o rejeitou dizendo que não tentaria a Deus. Isaías, então, proclamou a profecia.

Dado o contexto dinástico, parece que o filho do qual se fala aqui é o herdeiro do rei, continuador da dinastia davídica. Discute-se sobre quem é a “almah”, palavra hebraica que é traduzida na Sagrada Escritura por “Virgem”. Nos textos dos judeus que interpretam a Sagrada Escritura não se diz que a “almah” tenha concebido virginalmente. A profecia anuncia, em todo caso, que a dinastia davídica não será ameaçada: que Deus manterá sua promessa e que a esposa do rei conceberá um herdeiro. Seu nome será Emanuel para indicar que Deus está com o povo e com a casa de Davi.

A tradução dos LXX (a tradução para o grego) oferece algumas mudanças importantes em relação à versão hebraica. O termo “almah” foi traduzido por parthénos (παρθένος). O significado largo da palavra no hebraico quer se referir a uma mulher na idade para o casamento. O termo grego faz uma aplicação mais precisa do significado da palavra (quer mostrar que não houve nenhuma gravidez anterior).

Mateus faz esta interpretação messiânica, para dar a entender que Jesus é o Emanuel, o cumprimento das promessas feitas a Davi. Na concepção e no nascimento, da virgem, Mateus descobre o sinal dado por Deus. E foi essa a interpretação que a Igreja conservou e ensinou na sua história. Não se trata de uma interpretação arbitrária, porque o escritor sagrado é inspirado pelo Espírito Santo; além do mais, a totalidade do evento Cristo confirma a interpretação feita por Mateus. Um judeu não faria jamais esta relação com Cristo, visto que eles não aceitam Jesus como o Messias. Nós cristãos o fazemos e encontramos uma força nas palavras de Isaías que transcendem o contexto próximo em que elas se encontram, projetando-se em Cristo e encontrando Nele o seu verdadeiro significado.

Espero ter ajudado na compreensão desta questão. Suplico a Deus, pela intercessão da sempre Virgem  Maria,  para que derrame abundantes bênçãos sobre você e sobre os seus; que lhe conceda ainda mais o dom da sabedoria, para que você consiga penetrar com profundidade nos mistérios da nossa fé.

Pe. Cícero Lenisvaldo

Nenhum comentário: